sábado, 24 de janeiro de 2015


CANOA QUEBRADA

Paraíso em busca de identidade

24.01.2015

O turismo que alimenta é o mesmo que sufoca com a constante expansão. Ocupações disputam a paisagem

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Falésias sofrem o processo de erosão e colocam em risco as pessoas que transitam por perto
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Confecção artesanal de velas para jangadas na comunidade Estêvão, anexa a Canoa. No fim da tarde, a duna Pôr-do-Sol é a atração em Canoa Quebrada. Apesar da proibição, carros particulares disputam espaço
FOTOS: KLEBER A. GONÇALVES
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Aracati. "Vocês vieram mostrar as coisas boas ou ruins?" A dúvida de um dono de pousada ao nos abordar carregava a preocupação sobre que imagem se levará de Canoa. A vila praiana é tão plural que não é possível entendê-la isoladamente. Quem vive do turismo (a maioria) teme a "imagem negativa", que afete diretamente a atividade. Mas Canoa não é só de pousadas, restaurantes, barracas de praia, dunas e tirolesa. Há uma população plural e pulsante, em que o turismo é o bem e o mal. E apenas parte de uma Canoa ainda maior, mas que fica escondida por trás das falésias e da rua principal.
"Aqui é lindo pra quem vem. Lindo de verdade. Quem não quiser ver uma realidade maior, desvia o olhar, passa o tempo que puder pagar, depois junta as coisas e vai embora feliz", diz a vendedora Maria Almerinda. O diferente acontece quando, mesmo desviando o olhar, a realidade que não se quer enxergar bate a porta. Pode ser na forma de uma onda que banha a mesa da barraca, ou de um homem-zumbi pedindo um trocado para sustentar o vício do crack. Ou quando pede que não faça barulho e passe tudo: câmera, carteira, celular. E junto às fotos perdidas vai a lembrança da tranquilidade de até então.
Conflitos
É tensa a paz de Canoa. Vez por outra, há faíscas entre o turismo e a comunidade, ou a comunidade com ela própria, seja ou não pelo turismo. Explica-se: jovens que cresceram juntos disputam hoje o espaço em bugues nas dunas para onde levam os turistas. O turismo nas dunas é garantia de comida na casa do bugueiro; de outro modo, a ocupação causada pelo mesmo turismo choca-se com os interesses de uma comunidade, seja quando a falésia sofre erosão e interrompe os acessos ou quando o excesso de esgotamento sanitário polui, silenciosamente, a reserva subterrânea de água doce que abastece a todos.
Quando falta água na caixa reservatório, a lavadeira Margarida Pereira da Silva pensa que não deve ter faltado para as piscinas das pousadas, mas prefere não reclamar porque a família bota comer em casa por meio do turismo gerado por essas mesmas pessoas que se banham nas piscinas. Pesca e artesanato são, hoje, atividades menores realizadas pelos mais velhos. Os filhos de Laureano Carneiro não têm o mesmo ofício do pai pescador. "Os meus meninos estão é bem. Se fosse depender de pesca não tinha o que tem hoje, que até em carro próprio eles andam". Bugueiro e gerente de pousada, Lauro e Carlos, respectivamente, só dependem da movimentação de pessoas da praia.
Perspectivas
Para João Batista, servidor público aposentado, um nativo de Canoa se dar bem depende do ponto de vista, "e ainda assim é uma minoria. Muitas garotas daqui quando crescem estão fadadas a ser cozinheiras, arrumadeiras, recepcionista ou mesmo prostituta". O turismo, que gera 2.600 empregos diretos, tem causado uma dependência que ofusca outras formas de viver e trabalhar.
A expansão dos empreendimentos turísticos tem sufocado os canoenses que, na prática, dão suporte à própria atividade turística. A Escola de Ensino Fundamental Zé Melancia comporta mais de 500 crianças em um espaço nunca ampliado porque já está tomado por todos os lados. Em 2013, a instituição deixou de receber verba de um programa federal porque não possui o tamanho mínimo para comportar as várias atividades lúdicas dos alunos, como um parque recreativo e uma quadra esportiva.
Algumas das exceções são o Circo Escola e o Recriciança, importantes iniciativas para a comunidade por parte de Organizações Não Governamentais. Mas a cada ano surge uma nova pousada, algumas vista para o mar, nem que para isso tenha que crescer verticalmente.
A conhecida Rua Dragão do Mar, ou "Broadway", é cartão-postal dia e noite. Ganhou ornamentos e equipamentos para os turistas, como bancos com sombreamento. Tem uma placa da Prefeitura Municipal de Aracati, mas foram, de fato, compradas e colocadas pelos empreendedores locais em parceria com uma fabricante de bebidas. A prefeitura é o "apoio institucional".
A paz de Canoa continua tensa, e quando nos perguntaram qual imagem vamos mostrar, um auxiliar de serviços gerais de uma pousada diz que sua família pode ser expulsa de casa "a qualquer momento". São moradores da Rua Pôr-do-Sol (leva à duna de mesmo nome) que fizeram construções irregulares e, por isso, devem sair. Como já receberam o documento da Justiça, a desapropriação poderá ser feita com uso de força policial. Ao contrário das pousadas construídas em áreas de falésias, os moradores que ocupam o sopé da duna estão obrigados a cumprir a legislação ambiental. É uma Área de Preservação Permanente (APP) que, no fim da tarde, é ocupada por carros e pessoas para contemplar e aplaudir um lindo pôr-do-sol.
"Consciência da importância ecológica"
Fortaleza. "Em todas as comunidades com vocação turística do Ceará, tanto do litoral quanto Interior, desenvolveremos a coordenação dos trabalhos com diálogo, participação local das lideranças, empreendedores locais e a comunidade, com objetivo da criação da consciência da importância ecológica, turística e desenvolvimento econômico social", afirma Arialdo Pinho, secretário de Turismo do Estado do Ceará. A afirmação deu-se ao ser provocado após matéria publicada no caderno Regional (16/01) apontando problemas no Parque Nacional de Jericoacoara.
As palavras são bem recebidas pelos empreendedores de Canoa Quebrada, mas não trazem contentamento. Isso porque há anos se espera a execução do Programa de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur) no polo turístico em Aracati. Em 2013 houve assinatura de ordem de serviço para obras de revitalização dos espaços urbano-turísticos do centro da cidade. O projeto para Canoa Quebrada, prometido para o mesmo ano, não saiu do papel. Os donos de 23 barracas mantidas na ilegalidade aguardam ser remanejados para uma área própria, pois já se passaram três meses do prazo para deixarem a encosta das falésias.
Jericoacoara
No que diz respeito à Jericoacoara, motivo de reportagem publicada no dia, apontando uma série de falhas que vão da coleta de lixo ao policiamento. O secretário afirma que o governo atua naquele Parque Nacional em parceria com órgãos locais, por meio do Departamento de Trânsito do Ceará (Detran-CE), Secretaria de Segurança e Defesa Social (SSPDS), Superintendência do Meio Ambiente do Ceará (Semace) e Instituto do Desenvolvimento Agrário (Idace). "Estamos inaugurando uma UPA neste primeiro semestre, e no ano passado doamos compactadores de lixo para a Prefeitura trabalhar na comunidade".
Em maio de 2014, o governo do Estado lançou um pacote de 62,8 milhões em obras estruturantes para o turismo. Não contemplaram diretamente Canoa Quebrada, mas regiões litorâneas que historicamente demandavam investimentos como acesso pelas rodovias. Os recursos foram distribuídos em de Itapipoca, Trairi, Paraipaba, Paracuru, São Gonçalo do Amarante, Caucaia e Fortaleza, numa extensão de mais de 150 Km de litoral, parte do "Polo Ceará Costa do Sol", no Litoral Oeste do Estado.
FIQUE POR DENTRO
Disputa pelo território divide comunidade
Para muitas pessoas de Canoa, a pesca é uma memória. As atividades turísticas são o motor gerador de renda das famílias. Entre ser garçom, cozinheiro, segurança ou vendedor, bugueiro é a função mais cobiçada. Também mais difícil. Bugueiros associados, com cadastro e autorização da Prefeitura Municipal, enfrentam o transporte irregular nas dunas por parte dos 'piratas', que não possuem autorização, principalmente porque não há novas vagas de permissionários para essa atividade. O passeio pelas dunas, ao custo médio de R$ 200, fica menor nas mãos do bugueiro clandestino.
No dia 8 de janeiro, dezenas de bugueiros fizeram protesto na via que dá acesso às praias de Canoa Quebrada e Majorlândia para chamar a atenção do poder público para a fiscalização do trânsito nas dunas. Beto Andrade, presidente da Associação, afirma que os clandestinos chegam a colocar pedras e pregos no caminho dos bugueiros. Já os 'piratas' reclamam sofrer perseguição da Guarda Municipal e denunciam a venda ilegal de permissão para o transporte turístico nas dunas. A associação nega. O Ministério Público do Estado quer o fim dos bugues nas dunas, por causarem a degradação ambiental.
Melquíades Júnior

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