segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Vidas sem estigmas



Durante mais de quatro décadas, a comunidade do Gesso, ocupando área de quatro quarteirões, em região central do Crato, abrigou uma das maiores zonas de prostituição do Ceará. O que significava que os moradores - hoje estimados em mil famílias - não tinham direito a nenhuma política pública.
Porém, a partir de 2007, com a criação do Coletivo Camaradas, organização que une proposta artística e ativismo político, o quadro começou a mudar. As transformações possibilitaram aos moradores a saída da condição de invisíveis sociais.
Além de reconhecimento, o trabalho ganhou reforço ao ter o projeto "Território da Palavra" aprovado pelo Ministério da Cultura (MinC), dentro do programa "Todos por um Brasil de Leitores", na gestão da então presidente Dilma Rousseff.
O prêmio tem significado simbólico e real. O último é o repasse de R$ 21 mil (com descontos), recurso que será empregado em ações de incentivo à leitura, tendo como alvo as crianças que integram comunidade. Entre as novas ações que o coletivo pretende implementar está a oferta de internet gratuita para os moradores.
As atividades desenvolvidas pelo coletivo mostram que os organizadores levam ao pé da letra a compreensão de que a arte pode ser usada, sim, como elemento capaz de interferir não apenas no espaço da geografia urbana - porque essa interferência provoca reflexos, também, na formação social e, principalmente, na organização política de toda a sociedade.
Conceito ampliado
A ação demonstra, ainda, a aplicação ampla do conceito de arte urbana, que vai além de colorir muros. Os projetos literários "Postes de Poesia", "Pontos de leituras nas bodegas" e "Cordel engajado" são exemplos da concepção do trabalho do Camaradas. Outras linguagens artísticas são contempladas, entre elas o cinema. A realização do "Cine gesso" consiste na exibição mensal de filmes nacionais voltados ao público infantil.
"Nosso objetivo é construir arte com e para as pessoas", convoca Alexandre Lucas, artista-educador, um dos coordenadores do coletivo, cuja primeira ação teve como cenário a comunidade do Gesso.
Aos poucos, os moradores viraram protagonistas da suas histórias, que começam a ser recontadas - dessa vez, os estigmas foram substituídos pelo empoderamento da comunidade, construído a cada ação.
Localizada em área considerada de vulnerabilidade social, a comunidade do Gesso fica entre os bairros São Miguel, Pinto Madeira e Centro, conforme explica Alexandre Lucas. Ele destaca a importância das ações - a maior parte delas centradas na literatura. "Nossas ações dialogam com outros movimentos nacionais que misturam estética e políticas públicas", explica Alexandre.
Primeira ação
A primeira ação do coletivo, que investe na organização política das pessoas envolvidas, foi um documentário sobre a situação dos moradores da comunidade do Gesso.
"Era uma comunidade segregada que não tinha direito às políticas básicas, como saneamento e coleta de lixo", lembra. Com o declínio das casas de prostituição, durante os anos 1990, o lugar começou a conviver com o tráfico de drogas, continuando na condição de vulnerabilidade social.
"Seus moradores vivem de bico, de sub-emprego", atesta Alexandre Lucas, que escolheu o lugar para instalar a sede do coletivo. "Criamos uma espécie de laboratório para ajudar na construção do processo de organização da comunidade. A arte é o principal elemento do nosso discurso político", argumenta.
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Bodegas e cultura
Entre os projetos de maior destaque estão os pontos de leitura, desenvolvidos nas bodegas. São caixotes que funcionam como protótipos de bibliotecas. "As bodegas são os principais equipamentos culturais da periferia", observa Alexandre, justificando serem locais de fácil acesso à leitura.
Segundo o artista, é na bodega onde as crianças aprendem as primeiras lições de matemática e escutam as primeiras histórias. "Elas sabem se a moeda que trazem é suficiente para comprar a pipoca", justifica. As rodas de poesia completam o trabalho. "Nosso intenção é empoderar as crianças".
Postes poéticos
Outra ação, os "Postes de Poesia" são exemplo de intervenção urbana, na qual os postes de iluminação pública servem de suportes para poemas. "Eles são transformados em livros públicos", compara Alexandre. A leitura é feita a céu aberto, dando uma conotação de liberdade à arte poética.
"Os postes-poemas ganham registros visuais e podem ser acessados online, fazendo com que a iniciativa sirva de modelo para outras cidades", sugere o idealizador. Periodicamente, são realizadas rodas de leitura na própria sede do coletivo. O objetivo é compartilhar a produção dos autores, sobretudo os de cordel, bem como instigar a descoberta de novos escritores.
A influência da cultura popular é inevitável, já que a comunidade está na região do Cariri, berço de poetas tradicionais e escritores de cordel. Assim, o coletivo desenvolve ainda o projeto "Cordel Engajado", que tem a proposta de reeditar, desenvolver e incentivar a leitura.
Trabalho social
Quando os idealizadores do Camaradas decidiram, há quase uma década, realizar o trabalho que mistura arte e ativismo político na comunidade do Gesso, pensaram, à primeira vista, que seria fácil. No entanto, logo perceberam que era mais complicado do que podiam imaginar. O jeito foi reverter o foco para as crianças, moradores mais presentes no lugar.
"Não atendemos a nenhuma criança. Elas constroem o coletivo com a gente e estão inseridas no processo de organização da comunidade", admite Alexandre Lucas.
A palavra "partilha" define bem a filosofia do trabalho, que "quer democratizar mais a estética do Cariri e universalizá-la", completa. O coletivo conta com cerca de 50 integrantes, entre artistas, professores, arte-educadores, pesquisadores, produtores culturais e ativistas.
Livros circulando
Sobre o prêmio, Alexandre afirma que possibilitará a ampliação dos pontos de leitura - atualmente são quatro, devendo passar para 20, segundo projeções do arte-educador. "São caixotes disponibilizados nas bodegas", diz, que possibilitam o empréstimo de livros, fazendo com que as publicações circulem. "Já recebemos o prêmio e vamos começar a executar as ações", afirma.
Ricardo Alves da Silva, licenciado em Geografia e técnico em guia de turismo regional, atua no coletivo e fala sobre o trabalho realizado nos últimos quatro anos. São ações diversificadas voltadas principalmente ao incentivo à leitura entre os moradores da comunidade.
"Temos as rodas de poesia, que contam com a participação de poetas renomados até crianças em fase de alfabetização. Todos são instigados a recitar e ler poesias", ressalta.
O coletivo incentiva o que chama de "trocaria", que favorece o compartilhamento de livros, além de afetos e experiências no campo da intervenção urbana.
"O reconhecimento do MinC vai possibilitar a execução do projeto 'Território da palavra', que visa fortalecer as ações já iniciadas, bem como a implementação de leituras e poéticas visuais", adianta Alexandre. Uma das novidades será uma sinalização, com placas poéticas, para identificar o território da comunidade.

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